terça-feira, 12 de junho de 2012

PELA APROVAÇÃO DA LEI QUE PROÍBE TVs DE VENDEREM HORÁRIOS A IGREJAS



http://www.youtube.com/watch?v=rV9s33sxQZc



A RIDICULARIZAÇÃO DO SAGRADO

Análise da gravidez satânica de uma ex-obreira da igreja Universal que pariu três caveiras de plástico


As duas histórias que mais me chamaram a atenção essa semana são de certa forma parecidas. A primeira aconteceu em Manaus, num templo da Igreja Universal do Reino de Deus, e foi transmitida no programa “Obreiros em Foco”, do bispo Sérgio Corrêa. Uma evangélica chamada Denise, que abandonou a fé por um tempo e, arrependida, voltava agora à igreja pra contar sua triste experiência no período: engravidara do demônio. Uma Maria de Nazaré só que ao contrário e que ao invés do menino Jesus pariu três caveiras de plástico, iguaizinhas a essas que vendem na Uruguaiana.

A outra história é a de Rom Bomjan, um garoto budista de 15 anos que é visto no Nepal como um novo buda. O Discovery Channel fez um documentário sobre ele na época em que o adolescente permaneceu nove meses em meditação profunda, sem se levantar, comer ou beber. O canal filmou Bomjan 24h por dia durante dez dias em busca de alguma fraude e não descobriu nenhuma. Ao invés disso, presenciou alguns fatos estranhos, como gotas de suor escorrendo pelo rosto do garoto, quando a temperatura ambiente era de 3°C e ele permanecia imóvel, apenas com um pano sobre o corpo. Segundo os monges amigos de Bomjan, trata-se de uma técnica avançada de yoga que aumenta a temperatura corporal e permite inclusive que praticantes experientes sequem sobre as costas lençóis encharcados em poucos minutos. O longo período sem alimentação é esclarecido novamente a partir de técnicas de yoga absolutamente incompreensíveis à ciência ocidental.

Nenhuma ciência explica também como Denise pode engravidar do demônio e parir três caveiras de plástico. É uma pena que o Discovery Channel ainda não tenha se interessado em investigar o assunto. Mas acho incrível que um caso tão fantástico quanto esse passe quase que totalmente despercebido, restrito ao espaço silencioso das madrugadas na TV aberta, vendido a essas igrejas. Aliás, parece-me que as emissoras, por serem concessões públicas, deveriam zelar pela qualidade e veracidade do conteúdo transmitido.

Eu não vou aqui fazer julgamentos, até porque não tenho prova alguma de que esses casos sejam verdade ou mentira, posso apenas dizer que um deles me convenceu e o outro não. E partindo do pressuposto de que eu esteja certo – que pelo menos um deles de fato seja uma fraude - o que eu não tinha pensado ainda muito a respeito e que me parece mais grave é a tolerância que nós temos com esse tipo de coisa. Com esse circo de bizarrices em que a fé alheia substitui o palhaço.

O que leva uma mulher a ir ao palco/altar da igreja dizer que pariu caveirinhas de plástico, trigêmeos do demônio, se isso for uma mentira? Talvez doença mental, então ela não seria responsabilizada criminalmente. Em qualquer outro caso deveria ser. Não só ela, como principalmente o pastor que incentiva esse circo e utiliza o exemplo para alertar os demais fiéis dos riscos de abandonar a sua igreja. Depois ameaça com o inferno e cobra dinheiro em troca de proteção, numa atitude que lembra muito o que o código penal atribui ao estelionatário.

Mas parece que o meio dito acadêmico, intelectual ou ao menos um pouco mais esclarecido, se acostumou a olhar pra isso com a confortável distancia da ironia, e se satisfaz em gargalhar pelas costas da doméstica que conta assustada causos como esse da grávida possuída. Afinal, religião não se discute (e parece óbvio que esse pensamento só pode ter sido incentivado pelas próprias igrejas). O problema é que abandoná-la é omitir-se, é também contribuir com o estelionato.

Talvez isso aconteça ainda como um dos efeitos colaterais dos massacres e perseguições em que tantos cristãos, judeus ou índios foram mortos por ter uma fé diferente daqueles que possuíam o maior poder. E então, de modo compensatório, a liberdade religiosa atinge agora esse extremo de tolerância em que qualquer um cria uma igreja pra dizer o que bem entende, não paga imposto e compra espaço na TV pra reproduzir as bizarrices em que não acredita, mas convence gente ainda mais ignorante a acreditar e pagar por isso. Talvez sejamos também muito tolerantes com o passado de algumas dessas igrejas. Com os massacres praticados em nome de mentiras sagradas, que devem superar inclusive os números do nazismo. Mas isso é um outro assunto.

Aqui eu apenas me surpreendo com a mediocridade da religião no ocidente. Não que a oriental seja perfeita, é só que enquanto por lá discutem técnicas avançadas de meditação, a plenitude completa do ser e poderes como os que o Discovery Channel filmou no Nepal, por aqui nós nem nos surpreendemos mais com o demônio engravidando uma pobre coitada. E enquanto isso os crentes se preoocupam com o kit anti-homofobia do MEC. O papa em manter a camisinha proibida. Mais válido me parece discutir se o aborto é permitido no caso de herdeiros satânicos. E então capacitar exorcistas com técnicas de obstetricia.

Mas entendo quem considerar a comparação entre o iogue budista e a evangélica parideira de caveirinhas muito injusta. Tratam-se de casos específicos e provavelmente é possível encontrar histórias bem mais impressionantes ou absurdas em ambos os hemisférios. O que me parece é que por aqui somos mais suscetíveis à picaretagem sobrenatural. Talvez porque praticamente toda a nossa atual civilização foi construída a partir da crença de que uma virgem engravidou de um espírito santo. Como então acusar Denise de ser mentirosa?

Porém quem sabe seja verdade também que ela tenha feito isso na época errada e agora por aqui a religião ande desacreditada demais. Não sei nem se os pré-adolescentes de hoje ainda hesitam em fazer a brincadeira do copo pra chamar espíritos. Eu morria de medo. Agora eu vejo que o que assusta de verdade é o copo jamais ter se mexido. Que desde a invenção da filmadora estamos condenados a nunca mais ouvir falar de milagres. Ou pelo menos desses milagres grandiosos, inquestionáveis: multiplicar peixes, dividir o mar, transformar a água em vinho... Eu já ficaria extremamente satisfeito mesmo com o copo se mexendo. Só que até me provarem o contrário, eu tenho certeza que ele nunca se mexeu e pra sempre permanecerá assim, obediente ao princípio mundano da inércia. Considerar milagre mancha no vidro parecida com a imagem de Nossa Senhora ainda é demais pra mim.

Acredito então que as pessoas foram enganadas muito tempo. E que isso pode estar chegando ao fim. Às vezes me parece que o futuro sombrio das igrejas no ocidente será controlar apenas uma massa de semianalfabetos ou marginais. Pois, de fato, aceitamos hipocritamente aliviados quando o jornal mostra que presidiários e dependentes químicos tem se convertido às igrejas evangélicas, mesmo que as desprezemos. Para as outras camadas sociais, desenvolve-se filosofia, psicologia, física, arqueologia e tantos outros ramos do conhecimento a tentar suprir a mesma carência universal de certezas, a se esforçar pra responder com mais segurança o que o oriente apenas intui. Também para nos lembrar que o que alguns profetas da fé parecem requerer como invenção/revelação da própria igreja e justificar assim a sua importância, na verdade são patentes que não as pertencem, como no caso do amor ao próximo, tão caro ao cristianismo (talvez mais a Jesus do que a seus seguidores), mas que já era parte fundamental de tradições filosóficas muito anteriores.

Ainda assim quantos ocidentais entendem Platão, Heidegger, Freud ou a mecânica quântica? Não me parece um número suficiente. O que me parece é que sem religião e sem filosofia somos escravos. Condenados a retornar a um estado quase selvagem, à simples satisfação dos instintos e ao vício que de certa forma nos fazem perder a condição humana. Uma boa síntese dessa “condição”, muito especial na natureza, é o conceito heideggeriano de dasein : um ente capaz de se perguntar pelo sentido do ser. E é aí onde eu vejo o perigo maior de casos como o parto das caveiras satânicas, ou milagres fajutos e falcatruas metafísicas de toda espécie. Que se faça com que a partir da ridicularização absoluta do sagrado, tudo já nos pareça falso, inclusive a humanidade. O homem então transforma todo o seu potencial de pensamento, criação de significado e compreensão de si mesmo e do universo em mero instrumento a facilitar os serviços que lhe ordena a vontade, a mesma que controla e aprisiona qualquer animal. A isso chamamos progresso. A salvação ainda assim continuaria possível, porém não mais para nós, abandonada a própria condição de dasein. O que seríamos eu não sei. Talvez algo parecido com uma caveira de plástico.

segunda-feira, 7 de maio de 2012

O Brasil precisa de uma nova bandeira




"... em substituição ao lema positivista da faixa central, eu ainda fico em dúvida entre algumas opções de aproveitamento do espaço. Poderia servir à publicidade, arrecadando valiosas receitas pro Estado e diminuindo os impostos.“Casas Bahia, tudo em 10 vezes sem juros!”



Reconheço não ser essa uma prioridade, talvez nem mesmo uma necessidade. Na verdade espero que seja justamente o oposto, o tipo de coisa com a qual não nos preocuparíamos nem se um dia não tivéssemos mais nada pra nos preocupar. Só acho que precisa.

O problema maior eu vejo nesse lema ridículo de “Ordem e Progresso”. Segundo a Wikipedia, baseado no positivismo do Augusto Comte. “O Amor por princípio e a Ordem por base; o Progresso por fim”.

O progresso não pode ser um fim em si, e isso já deveria ser bastante óbvio, ensinado a todos desde os anos iniciais do jardim de infância. Nas palavras de Adorno e Horkheimer, simplesmente “pra que Auschwitz não se repita”. Porém esse é um tema um tanto longo e quem discordar da questão pode encontrar esses dois opositores mais empenhados na “Dialética do Esclarecimento”. Ou no álbum The Suburbs, do Arcade Fire. Aqui eu quero apenas provocar....e a combinação das cores também é terrível!

Admito que isso pode ser uma questão de gosto pessoal, ainda que eu desconheça alguém que tenha decorado a sala de casa com as tonalidades da pátria. Parece-me que superado o sentimentalismo adquirido por osmose depois de tantas copas do mundo, o verde e o amarelo voltam a ser incompatíveis em qualquer projeto que não seja o de um semáforo.

Gostaria de uma bandeira preta, básica. Talvez cinza. E que essas cores deixassem de ser estigmatizadas. O preto poderia simbolizar o petróleo, ainda que um dia ele acabe, é provável que dure mais que o verde da Amazônia. Quem sabe possa entrar na bandeira pelo sistema de cotas. O cinza seria uma homenagem à fumaça da máquina a vapor, símbolo máximo da revolução industrial e do progresso, que de modo algum precisa ser esquecido, apenas reinterpretado.

Acho que seria mais apropriado também no lugar das estrelas, bundas. O pudor é uma donzela velha e frígida e a contribuição brasileira nesse setor ainda é muito maior do que em pesquisas astronômicas. Poderíamos escolher as mais bonitas de quatro em quatro anos, cada uma representando um estado, e imortalizá-las na Academia Brasileira de Bundas. Nessa o Sarney talvez não entre.

Já em substituição ao lema positivista da faixa central, eu ainda fico em dúvida entre algumas opções de aproveitamento do espaço. O certo é que deveria ser algo também escolhido em votação popular e rotativo, adaptado ao contexto de mudança constante pós-moderno. Em algum momento poderia servir à publicidade, arrecadando valiosas receitas pro Estado e diminuindo os impostos, então seria feita uma licitação. “Casas Bahia, tudo em 10 vezes sem juros!”. Em outro, simbolizar a arte do período. “Ai, se eu te pego, ai ai!”. Talvez em versão internacional “Oh, if I catch you, oh, oh!”. Mas a interpretação oficial do sentido necessitaria de novo pleito, visto que é comum as obras de arte terem várias possíbilidades subjetivas.

No exemplo proposto, entendo o “ai”, como uma interjeição de dor, que seguido pelo verbo "pegar" no sentido erótico, quem sabe represente “que toda alegria já vem embrulhada num papelzinho fino de tristeza”, como sabia o Millôr melhor que o Comte. Já em inglês o “oh” me parece mais relacionado à glória, satisfação. E o verbo “catch” é entendido na acepção imortalizada em “The catcher in the rye” - O apanhador no campo de centeio. No clássico de J.D Salinger, “catcher” tem um sentido de salvador. O protagonista Holden Caulfield sonha que impede as crianças que correm em um campo de centeio de caírem no abismo a sua frente. O mundo dos adultos é esse abismo, a perda da pureza infantil. O nosso abismo poderia ser escolhido outra vez por votação e assim aproveitamos mais a maior invenção da história desse país, orgulho nacional, que é a urna eletrônica. Dessa vez a escolha seria: “Do que você quer salvar nossas crianças?” E eu voto na opção: “da estupidez". Não há outro pecado.

Carta ao deputado Jair Bolsonaro




Exmo sr. Bolsonaro, Acompanho há algum tempo as declarações de vossa excelência e sua linha de raciocínio me interessa profundamente. No entanto, talvez pelo tempo limitado dos discursos que tive a oportunidade de assistir, seu pensamento sempre me parece exposto apenas em parte e por isso solicito nessa carta a gentileza de que o senhor me esclareça alguns pontos. Vossa excelência afirma, por exemplo, que quando “o filho começa a ficar meio gayzinho, leva um coro, muda o comportamento” e que é uma “desgraça para um pai que o filho chegue em casa dizendo que namora o Joãozinho”, porém essas declarações me parecem que necessariamente deveriam ser acompanhadas por argumentos que estão sendo omitidos. Por que o senhor considera isso uma desgraça?

Para não tomar o seu tempo com uma pergunta que eu talvez já conheça a resposta, proponho que apenas me corrija se eu estiver enganado. Acredito que essa sua opinião - e a de todos que concordam com ela - fundamenta-se em princípios religiosos, ou haveria algum outro motivo?Caso eu esteja certo e não exista realmente nenhuma outra causa para a homofobia que não seja religiosa, eu li que o senhor é católico e pesquisei na Bíblia algumas passagens que de fato podem servir de base para os seus discursos, como em Levítico, que diz “Não se deitarás com outro homem como se mulher fosse”. Também aqui não são fornecidas maiores explicações e é a origem divina creditada à Bíblia por seus fiéis que lhe fornece a autoridade necessária. Porém isso me leva a outra questão. O mesmo Levítico diz que se um homem descobre que a mulher com quem casou não é virgem, tem o direito de apedrejá-la até a morte e que escravos para nos servirem podem ser adquiridos entre os povos circunvizinhos e também entre os filhos dos estrangeiros que habitarem entre nós. Sendo assim, não lhe parece que as acusações contra a Zara são heresias, visto que a Bolívia faz fronteira com nosso país? A lei Maria da Penha não precisa ser revista?

De todo modo eu nunca conheci nenhum irmão ungido em Cristo e que condena a homossexualidade com argumentos bíblicos dizendo que os bolivianos escravizados são de povos circunvizinhos, então pode. Se existem devem ser uma minoria. E é um raciocínio complicado demais pra mim , que a glória do Senhor ainda não me concedeu, compreender como eu posso acreditar que a Bíblia seja uma revelação divina que deve ser seguida com fé absoluta, mesmo quando já se considera que ela não pode mais ser, ou então pela lógica comum eu teria que defender também o marido que apedreje a mulher até a morte por um motivo considerado válido. O pensamento utilizado pelos fiéis e talvez por vossa excelência para superar esse paradoxo parece conter alguma sutileza que eu gostaria que me fosse explicada. Acredito que seja algo semelhante ao que George Orwell chamou de duplipensar, defender simultaneamente duas opiniões opostas, sabendo-as contraditórias e ainda assim acreditar em ambas. No caso, acreditar numa verdade absoluta e sujeita a equívocos. Como é feita essa manobra mental de induzir conscientemente a inconsciência, e então, tornar-se inconsciente do que se acaba de realizar para mim permanece um mistério que seus discursos não tem ajudado a desvendar.

É por isso talvez, por essa impossibilidade de me render a uma fé que me parece absurda, que eu desconfio que a Bíblia, mais especificamente o velho testamento, tenha surgido na verdade para justificar uma certa ordem, manter essa ordem numa época em que a aristocracia aceitava a escravidão, em que as mulheres eram submissas, e que as populações por serem dizimadas em constantes guerras e epidemias, precisavam que homens e mulheres acasalassem e gerassem o máximo de filhos possíveis. Acredito também que escravos gays que não se reproduzissem perderiam muito o seu valor e que famílias com bastantes filhos eram vantajosas para o trabalho nos sistemas feudais. A situação complica porque na medida em que o mundo se transforma, que a razão e a ética humana estabelecem limites menos tolerantes para a barbárie ou a ciência derruba por completo algum dogma, as igrejas são obrigadas a esquecer o que diziam antes e se adaptar outra vez ao cenário. Mas elas geralmente demoram muito tempo pra mudar de ideia sobre o que quer que seja que tenham afirmado - vide Darwin e a evolução das espécies, que algumas provavelmente não aceitarão nem se uma macaca parir um ser humano e também a Terra girar ao redor do Sol, que só aceitaram depois de não haver mais como negar e da igreja católica tentar queimar todos os que diziam isso.

O que é totalmente compreensível, já que cada vez que o duplipensar tem que ser aplicado, muitos fiéis são vencidos pela lógica e as abandonam. Considero, em função desses problemas, que a sacralização da Bíblia possa ter sido apenas uma ideia genial a serviço de uma aristocracia em busca da manutenção do poder estabelecido. Inventou-se então um sistema de vigilância em que o ser mais poderoso de todo o universo observa a tudo e a todos o tempo inteiro, em qualquer lugar, inclusive em pensamento, e que se não forem feitas as suas vontades explicadas na Bíblia, ele não mais nos defenderá de outro ser, não tão forte só que muito mais malvado e que quer você como escravo num lugar pegando fogo. Por outro lado, o ser mais poderoso, o filho dele e todo o resto da família te amam muitíssimo, suprem todas as suas carências e não só te salvam desse trágico destino, como te esperam num paraíso eterno (que não me parece muito bem definido, o que me faz pensar que seja na verdade a ameaça do inferno que conquiste os fiéis) se você aceitar as condições impostas. A principal delas é acreditar que isso seja verdade. Questionar que possa ser mentira é uma das coisas proibidas, buscar argumentos contrários então, inferno na certa, por isso religião não se discute. Até aí está certo? Porém se essas dúvidas não forem esclarecidas eu não consigo acreditar. E sendo assim, como exposto no início, religioso o único argumento homofóbico, parece-me que caso as igrejas novamente sejam obrigadas a mudar de opinião e reconhecer outra vez que estavam erradas, o prejuízo já terá sido grande demais, intolerável, causa de um sofrimento desnecessário para muitos bilhões de pessoas em séculos de perseguição, entre elas grandes ídolos e gênios, Leonardo da Vinci, Rimbaud, Wittgenstein, Foucault, Tchaikovsky, Wilde. Pode significar a derrocada final rumo ao descrédito e por isso não será simples mudar de ideia agora.

Creio também que se o estado não tivesse nada de religioso, a homossexualidade poderia ter sido incentivada, como forma de controle populacional, e o mundo seria um lugar melhor. O que eu não tenho tanta certeza é se a orientação sexual pode mesmo sofrer influência determinante por meio de incentivos. Não reprimir me parece suficiente, talvez como fizesse a Grécia anterior ao cristianismo. Sobre esse tema vossa excelência se posiciona de maneira bastante clara e prova disso é a defesa entusiasmada à proibição do kit anti-homofobia do MEC (chamado pelo senhor de kit-gay), pelo que eu li, principalmente em função de um vídeo que diz que os bissexuais tem mais chance de transar. O dobro de chance. Nesse caso eu concordo com a matemática e com o argumento. Talvez isso de fato incentive as crianças a serem bissexuais e não apenas auxilie no combate à homofobia. Concordaria também com algum deputado que afirmasse ser essa a ideia. Livrar-nos no futuro da programação mental, social, genética ou o que quer que nos leve a escolher entre os sexos. O amor livre para se manifestar entre todos os corpos. Desconsidere a ameaça do castigo divino nos moldes de Sodoma e Gomorra a se abater sobre todos os que não sejam heterossexuais e exclua também a possibilidade de um espancamento com lâmpadas e pontapés na Avenida Paulista, eu acredito que todos gostaríamos de ser bissexuais. É o dobro de chance de transar, de se apaixonar. A meu ver restaria saber apenas se esses incentivos tem mesmo algum efeito e se a psicologia e outras ciências podem também nos ajudar nesse objetivo. Talvez precisemos de instrumentos mais sofisticados, visto que igreja, repressão e violência não foram suficientes para uma heterossexualidade absuluta. Mas se na visão de vossa excelência esse ponto ou qualquer outro dessa carta forem falsos, por favor, corrija-me.

Atenciosamente,


segunda-feira, 29 de novembro de 2010

A guerra que já foi vencida


Se a violência pode ser justificada é na iminência de uma tragédia maior de outro modo inevitável. Sobre essa base a guerra busca a sua razão de ser, no seu ideal de futuro, que distrai a visão de um presente assustador. Porém a mesma lógica que garante ao assassino o perdão pode demonstrar que uma ação violenta produz, por natureza, novas sementes de violência.

Nos combates do Rio de Janeiro falta base a esse futuro idealizado e redentor, capaz de fazer valer a pena as conseqüências, pelo fato de o inimigo não existir como indivíduo, mas sim também como efeito. Então seria irrelevante, não fosse trágico, quantos são presos ou mortos antes que se elimine a causa, o motivo primeiro que dá corpo ao problema: o tráfico de drogas.

Essa imaterialidade do inimigo ultrapassa os limites da favela e ignora o combate aos corpos, que com facilidade são substituídos. Faz de tudo uma farsa, encenada pela polícia, com o aval dos governos e da sociedade. Todo combate se mostra em vão. Todo dinheiro gasto, todo o tempo e tantas vidas. O tráfico jamais pode ser vencido por um motivo óbvio demais para ser negado: as pessoas continuarão usando drogas.

Talvez ainda seja difícil demais pra alguns acreditar nisso, porém sempre haverá drogas. De todos os tipos que se possa imaginar. Absolutamente independente do que quer a lei ou mesmo a maioria. Ingênuo é pensar que um dia pode ser anunciada a queima do último pé de maconha do mundo e que já não há ninguém disposto a buscar novas sementes. Acabar com o poder do narcotráfico no Complexo do Alemão, na Rocinha, ou onde quer que seja, na verdade nada mais é que transferir esse poder paralelo para outro lugar. Um poder desestruturado, mas que se não for extinto a partir de suas causas, se estabilizará novamente.


O Rio vive hoje o caos da ausência de uma luz legítima no fim túnel. A população assustada se entorpece na ilusão e aplaude o mágico no final de cada cena. Um espetáculo dessa vez grandioso, com tanques de guerra, helicópteros blindados e muitos mortos. Ainda assim um espetáculo vazio, encenado por mascates de falsas esperanças. A solução para a violência não pode estar em recuperar territórios dominados, dizimar quadrilhas e apreender drogas e armas, uma vez que tudo pode ser substituído, mas a anestesia é vendida como cura, como um remédio amargo e milagroso, administrado somente agora porque o governo atual é melhor que o anterior.

Aceitando a lógica de que as drogas continuarão sempre a ser vendidas, a perseguição aos traficantes revela sua face absurda. Todas as mortes decorrentes desse equívoco apenas contribuem para que a legalização se estabeleça como uma causa humanitária. Uma causa motivada pela compaixão e cujo efeito imediato seria a quebra do círculo de repressão inútil, violência e ilusão que a tantos causa sofrimento.

Se a situação no Rio de Janeiro fugiu de controle se deve ao fato de que há muito tempo o dinheiro relacionado às drogas é investido em armas. Uma defesa contra a polícia e contra facções rivais na disputa por uma fatia maior de um mercado sem lei. E ainda que esse armamento seja todo destruído, o dinheiro das drogas permanecerá nas mãos de quem o estado combate, fazendo o círculo girar mais uma vez.
Enquanto a hipocrisia não for vencida, enquanto a chacina de traficantes nas favelas for comemorada na zona sul em festas regadas a maconha e cocaína, o efeito anestésico da repressão se perderá sem que a doença em si seja tratada. O tráfico encontrará novos caminhos à margem da lei, sempre que lhe for imposto obstáculos impermanentes. E por maior que seja o benefício das Unidades de Polícia Pacificadora, entre os principais resultados práticos da implantação e manutenção do modelo em todas as favelas em que existe tráfico, estaria a falência do país.

A invasão a alguns destes territórios parece mais uma questão de orgulho. Algo para esconder uma derrota que não se quer admitir. O deboche manifesto, transmitido ao vivo, torna-se então intolerável. Soa também como um pedido. Para que os traficantes sofistiquem seus métodos, não desafiem o poder oficial, conquistem seu espaço com mais diplomacia. Nada de invadir favela rival dando tiro. Façam seus líderes dialogar, respeitem a concorrência e se escondam às vezes, quando aparecer um policial honesto. No mais, sigam tranqüilos. A guerra na verdade já foi decidida e as drogas venceram. Seu lugar na Terra está garantido na vontade de um número mais que suficiente de nós, seres humanos, usuários ou comerciantes. A legalização é apenas uma formalidade necessária, o acordo de paz que oficializa a derrota.

domingo, 4 de julho de 2010

(conto) Carta aos que chegaram do passado

Sempre fui fascinado por suas civilizações. Fascinado talvez não seja a palavra mais adequada, já que o sentimento que elas me despertam é a mais profunda e sincera aversão. Todavia o motivo desta minha carta não é dizer o que eu penso, e sim ajudá-los, o que de certa forma não deixa de ser irônico. Há tempo reparo na dificuldade que muitos encontram para se adaptar a esse mundo, totalmente novo para vocês. E desde que passamos a reviver pessoas de épocas remotas, como no famoso caso dos alpinistas do topo do Himalaia, o que tenho notado é uma falta de consideração tremenda de nossa parte. Nossa concepção de história, por ser baseada em centenas de milênios, não se preocupou em preservar em detalhes a memória de sociedades primitivas, em que pessoas como vocês viveram. E trazê-los de volta a vida dessa maneira, sem responder a questões básicas de sua época, não me parece justo. Por isso pesquisei em tudo o que me foi possível ter acesso sobre o passado distante e escrevi isso que a partir de agora divido com quem se interessar. Tentei ao mesmo tempo explicar o início da era atual, inclusive através de trechos de outros documentos, que acabaram por se perder entre os séculos. Espero lhes ser de alguma valia, ainda que deixe muitas questões sem resposta. Encarem essa carta apenas como uma introdução ao nosso mundo - que agora também é o de vocês – e preparem-se para desvendá-lo sem pressa. Comecemos então pelo final da era que muitos dos que chegaram do passado chamavam de contemporânea.

O estudante de Biofísica Frederico Saliner talvez seja a primeira pessoa a quem eu deva apresentá-los para que possam entender como o mundo em que vocês viviam deixou de existir. Em meados do século XXI do antigo calendário cristão, ele foi pioneiro ao realizar com sucesso o experimento que literalmente dividiu a história e marcou o ponto zero de onde décadas depois, com a criação do novo calendário, a primeira era seguinte a de vocês teve início.

A experiência trouxe de volta à vida um herdeiro extraordinariamente rico, de dez anos, que morrera atropelado. A família do garoto, desesperada com a tragédia, congelou o corpo recém-falecido e passou a procurar no submundo científico toda sorte de procedimento que lhe prometesse uma esperança. Os corpos indigentes utilizados por Saliner e por centenas de outros cientistas nas pesquisas foram esquecidos pela história e o garoto foi considerado pela ciência o primeiro ser humano a ressuscitar.

A notícia surgiu no início como boato, que meses depois foi confirmado e comprovado por Saliner. Em um pronunciamento assistido por bilhões de pessoas, ele explicou por alto as dificuldades do processo e as técnicas utilizadas para a realização da façanha. Lembrou que cada caso seria um desafio, mas que o futuro não deixara por isso de ser promissor, uma vez descoberta a forma de reconstruir o cérebro e trazê-lo de volta à atividade sem sequelas. Explicou também os motivos pelos quais a notícia não foi imediatamente divulgada, que basicamente orbitavam o mesmo ponto: os imprevisíveis e drásticos resultados da descoberta. Já armado para enfrentar as conseqüências e lucrar o máximo possível, o cientista concedeu a primeira entrevista coletiva, ao lado do garoto. .
- Podemos ser imortais? – foi a primeira pergunta.
- É provável que sim. E que no futuro a única maneira de um ser humano morrer seja destruindo completamente o seu cérebro, e com isso suas memórias, conhecimentos e experiências. É isso que faz dele um ser único e reconhecido como tal. Todo o restante, coração, estômago, pulmões, pele, rosto, assim como já está sendo feito, poderá sempre ser consertado ou substituído. Reconstruir as conexões destruídas no cérebro, pelo tempo, perda de oxigenação ou qualquer outro processo, resultante ou não em morte cerebral, pode ser o caminho para a vida eterna.

Saliner não chegou a viver o suficiente para ver realizada sua profecia. Apesar de ter ressuscitado várias vezes, a medicina nessa época ainda não havia avançado a ponto de conseguir manter infinitamente o corpo inteiro funcionado. Nenhum contemporâneo de vocês sobreviveu por mais de 150 anos. .
A pergunta seguinte foi para o garoto e talvez tenha sido ainda mais interessante.
- O que você viu durante o período em que esteve morto? – indagou o jornalista, sem os eufemismos cabíveis frente a uma criança.
- Não vi nada.
Não consigo imaginar alguma outra frase na história que tenha causado tamanho impacto. Nos meses seguintes, enquanto a discussão sobre o que ocorrera no laboratório de Saliner ainda era o assunto mais discutido em todo o mundo e outros procedimentos semelhantes ao do garoto já haviam sido realizados com o mesmo sucesso, tentou-se justificar o fato dessas pessoas não se lembrarem de nada após a morte, com um raciocínio similar ao da reencarnação, e do esquecimento das vidas passadas. Ou então dizendo que o espírito é completamente independente do cérebro. Mesmo assim as instituições que vocês chamavam de igrejas sentiram-se ameaçadas, uma vez vislumbrada a hipótese de a morte não mais ser temida. Adotaram então uma postura ferozmente contrária à nova técnica e o tom de ameaça adquiriu requintes macabros nos cenários descritos pelos líderes religiosos como o destino daqueles que desafiassem a hora escolhida por Deus para desencarnar. O slogan “Morte é vida”, ganhou fama após ser tema de uma campanha mundial patrocinada pela igreja católica, que conseguiu com isso manter por algum tempo parte do seu poder e diminuir a angústia dos mais pobres, impossibilitados de arcar com as despesas de ressuscitar. Já em cultos evangélicos, pastores afirmavam ter conversado diretamente com Deus sobre os acontecimentos e a mensagem era clara: Saliner é o demônio!

O discurso começou a mudar assim que alguns desses líderes caíram enfermos. J.J Souza, o super missionário da Igreja Universal da Graça do Senhor Jesus Cristo Todo Poderoso, foi o primeiro dos grandes a se submeter ao tratamento de Saliner. A princípio tentou de todas as maneiras manter o sigilo sobre a sua ressurreição, mas na segunda morte acabou descoberto. Passou a adotar o discurso de que se Saliner conseguiu o que conseguiu foi porque Deus deixou. E que o próprio Deus lhe disse pessoalmente durante o período em que esteve morto “vai, ressuscita e termina a tua obra”. Não teve como negar o pedido, mas informou aos fiéis que a morte continuava sendo o único caminho para o paraíso ao lado de Jesus e que apenas ressuscitou para cumprir a missão, a ele outorgada por Deus, de elevar a fé do povo ao máximo nesses tempos apocalípticos. Já o Papa seguiu postura contrária após se submeter ao processo. Convocou a imprensa para a Praça de São Pedro no Vaticano e lá anunciou a renúncia ao cargo. Justificou a atitude assumindo a culpa de não ter certeza da existência Deus, que ao morrer não viu nada do outro lado e que nem ao menos sabe se realmente existe algo a ser visto. Por essas dúvidas abraçava agora a ciência de Saliner. Dias depois se mudou para Ibiza.

A renúncia do Papa foi o estopim para a ruína de todo o pensamento teológico ocidental. Por alguns anos ainda procurou manter-se as massas ligadas à fé. Buscava-se com isso evitar a anarquia generalizada que poderia ter início caso as amarras morais impostas no cabresto das religiões, os pecados e o medo do inferno, evaporassem todos ao mesmo tempo e em espíritos pouco habituados à liberdade. Mas o tempo se encarregou de enterrar de vez o Cristianismo e todas as outras religiões de sociedades civilizadas. Após alguns séculos, a profecia de Saliner se cumpriu. A ciência se desenvolveu como nunca, com os grandes gênios trabalhando em suas obras por um período muito maior, e a cura de todas as doenças não tardou a chegar. Já era possível viver para sempre. O esboço do que viria a ser o novo mundo estava traçado.

No início, anarquia, revolta e violência cresceram em um assustador exponencial, mas que nos anos seguintes puderam ser domados através de um acesso muito mais barato à ressurreição e a uma reforma nos sistemas judiciário e penal. Termos como homicídio tiveram que ser revistos e novas penas impostas. Ocultação de cadáver, por exemplo, passou a ser punido com prisão perpétua, sem possibilidade de ressurreição, em casos em que a ocultação do corpo resultou na impossibilidade do processo de retorno à vida da vítima. Mesma pena aplicada para todas as outras ocorrências em que o cérebro foi perdido, como incêndios criminosos, bombas e tiros de grosso calibre na cabeça. As medidas refletiram em uma drástica redução do número de “homicídios consumados”, termo criado para designar os episódios em que não foi possível a ressurreição. Por outro lado, os “homicídios reversíveis” cresceram bastante, e as penas passaram a ser calculadas de acordo com a complexidade do processo necessário para a reversão do quadro. Se o número desses homicídios nunca voltou aos padrões anteriores à era das ressurreições, também não comprometeu em nada o futuro, que se desenhava cada vez mais grandioso.

O número reduzido de mortes, em alguns séculos nos obrigou a adotar um controle rigoroso de natalidade. A permissão para nascer passou a custar uma fortuna e estava diretamente ligada ao número de óbitos registrados no ano anterior. Muitos economizaram durante vários séculos para ter um filho, já que burlar a lei era praticamente impossível. Mulheres grávidas precisavam de um atestado que comprovasse a compra da licença, sob pena de serem obrigadas a abortar. Fora isso as maternidades, pediatrias, creches, escolas e todos os produtos que em outras épocas tinham como alvo as crianças passaram a ter uma nova organização calculada em função do número de permissões. Tudo personalizado. Ter um filho às escondidas, além de crime, era condenar a criança a uma vida à margem da sociedade. Mas com a evolução da medicina reprodutiva, já não era preciso ter pressa, e em geral as mulheres deixavam para engravidar depois dos quinhentos anos. O que revolucionou completamente também as estruturas familiares. A imensa maioria dos casamentos feitos ainda na época em que a frase “até que a morte os separe” possuía sentido, não resistiu nem por um século. Os que se mantém juntos até hoje, desde o início da nova era, ainda servem de inspiração aos poetas, mas não passam de algumas centenas espalhados pelo mundo. Se antes as uniões que sobreviveram à juventude e à maturidade, dificilmente terminavam na velhice, hoje, por não existir mais essa velhice como na era passada, o desafio de permanecer junto tornou-se infinito.

Outro aspecto interessante da sociedade de vocês, que se opõe em definição a essa idéia romântica do amor e que contribuiu no início para o controle de natalidade, diz respeito às guerras. O fim da última que se tem notícia ocorreu há alguns milênios, no local onde vocês acreditavam que Jesus teria ressuscitado, e que depois eu soube representar também a terra santa de outras seitas. Acredita-se que esse termo “guerra” utilizado atualmente para dar ênfase à referência de uma discussão ou deixar claro uma antipatia mútua, em algumas sociedades primitivas significava muitas vezes se oferecer em sacrifício por uma forma de agrupamento, chamada por vocês de país, ou por uma religião. Especula-se inclusive sobre a existência dos chamados homens-bomba. Pessoas que amarravam explosivos ao corpo e detonavam a si próprios e ao máximo possível de semelhantes. Há quem duvide, mas eu acredito. Visto que esse mundo para vocês era considerado apenas uma ponte entre algo não muito bem definido e ou céu ou o inferno. Destruir a ponte, garantindo um lugar do lado escolhido, não parece nada irracional. De certa maneira vocês mesmos podem ser considerados também uma ponte. A que nos separa dos animais.

Gostaria de deixar claro que apesar de avaliar a forma como vocês viviam, inclusive pior que a dos animais, que ao menos aproveitavam ao máximo seus instintos, e também de ter afirmado no início sentir nojo de suas sociedades, de maneira alguma deposito sobre vocês a culpa por suas mazelas. O que vocês chamavam de “condição humana” deveria mesmo ser algo terrível. Tão terrível, que poucos eram capazes de lidar com ela, abrindo mão de confortos como a crença em além-mundos. Em nossa sociedade atual, talvez o número de espíritos pouco iluminados permaneça o mesmo. Porém é evidente que criados em um mundo mais salutar, que se nem de longe é perfeito, mais distante ainda está do conhecido por vocês, mesmo os cérebros menos brilhantes puderam alcançar um nível razoável de existência. Se não dominam técnicas avançadas de meditação, nem são capazes de elevar-se às dimensões físicas do corpo, ao menos encontram satisfação em prazeres vulgares. Prazeres que vocês condenavam ou reprimiam nessa recusa aos instintos, e acabaram assim por erguer alto demais, sobre si próprios, um peso que se tornou insustentável. Esse peso vocês chamavam de vida. O que restava era esperar a morte. E mesmo assim temê-la. Mas não vou mais me alongar em pormenores. Acredito já ter explicado com alguma clareza o quanto esse mundo é diferente do que vocês conheceram. O restante deve ser visto e vivido por vocês mesmos, e nenhuma definição encontraria melhor caminho que a experiência. Espero com sinceridade que de alguma forma o que eu escrevi ajude os recém-chegados a encontrar esse caminho e a desfazer as amarras que ainda os prendem ao passado. De todos os valores cultivados por vocês e também ainda por nós, talvez a solidariedade e a empatia, que serviram de base para essa carta, sejam os mais obscuros. Não sei realmente porque eu quis escrever isso. Talvez seja egoísmo e vontade de que mais um pedaço de mim ainda permaneça nesse mundo, que por tantos e tantos anos eu amei.
Atenciosamente,
David Saliner.

A sala de visitas parecia ainda mais vazia do que o de costume e David teve toda a paz necessária para realizar o último trabalho. Pegou a corda com firmeza e atou dois nós para prender junto à cabeça alguns quilos de explosivos. Tirou do bolso o fósforo e coloriu a sala de vermelho. Nas ruas do centro da metrópole o barulho da detonação não chegou a ser ouvido por humanos. Apenas os pássaros que se empoleiravam nas amendoeiras, precipitaram um voo assustado rumo a uma pousada mais distante. É domingo e poucos homens transitam pelos arredores cinzentos e de atmosfera hostil, peculiares aos grandes centros em dias como esses. Na maioria mendigos, que há algum tempo já são incapazes de ouvir e que aos finais de semana se arrastam pelas sombras dos arranha-céus.

sábado, 12 de junho de 2010

(conto) Jeremias sabe a verdade

A realidade apresenta histórias que de tão extraordinárias a assimilação desses fatos como reais exige algum esforço. Essa aconteceu em Vargem Grande, um bairro tranquilo da zona oeste do Rio de Janeiro, que apesar de parte da metrópole mantém ainda um certo ar de interior. Senhora Anita foi encontrada morta dentro de casa com um tiro na cabeça e suas duas netas desapareceram. Nenhum vizinho ouviu o disparo ou foi capaz de fornecer qualquer informação à polícia, que revirou toda a residência à procura de vestígios. As únicas pistas encontradas e que chocaram os investigadores haviam sido deixadas pelo próprio autor do crime: uma carta obscura escrita à mão e um pen-drive.

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Ao senhor investigador,

Jeremias enxerga toda a sombria escuridão da madrugada e nada pode falar. Ele brilha com a lua e com os faróis solitários das motocicletas, mas não conta a verdade. A vizinhança já viu Jeremias pela rua, apesar de não reconhecê-lo. Senhora Anita passa por ele com o saco de lixo todo o final de tarde e Jeremias espera ela sair para entrar na casa numa terça-feira. É quando duas lindas meninas costumam visitar a vovózinha. Às vezes ficam para o jantar, às vezes apenas pegam algum dinheiro e partem em seguida. Bruna e Camila, gêmeas idênticas na exuberância do final de adolescência. Eu me masturbo pensando em nós três.

Na casa do final da rua o farmacêutico Ezequial recebe rapazes quando a esposa não está. Ela foi internada porque levou uma facada na prótese de silicone e há duas semanas que o marido transa todos os dias. Jeremias presenciou algumas indecências, mas hoje ele está na sala da senhora Anita, onde Bruna assiste ao jornal à espera da irmã no banho. A voz feminina que sai da televisão informa que o laranja está na moda. A modelo tropeça, mas eu não sinto pena. Jeremias passa atrás do sofá enquanto a garota dá risada da modelo. É o barulho do chuveiro que chama a sua atenção e ele caminha até a suíte. Decide deitar na cama, sobre algumas roupas que parecem ser da senhora Anita. Jeremias cheira todas as peças. A calcinha ele chega a rasgar um pouco com os dentes. A pureza e os modos de Jeremias me comovem.

Senhora Anita volta para casa devagarzinho. Não caminha muito bem, mas aos setenta anos, ainda trepa de vez em quando. Já ficou viúva duas vezes e agora anda de namoro com um cretino que eu conheço. Senhor Apolônio, meu professor de História na época da escola. Eu só lembro que ele dá aula olhando pro teto, a turma ri da sua cara de imbecil e ele desconta sua frustração em sermões de auto-ajuda. Nunca casou nem teve filhos. Publicou dois livros que ninguém leu e agora namora senhora Anita. Difícil saber como ainda não enfiou uma bala na cabeça.

- Tua irmã ainda tá se arrumando? Camila!Camila! Vou lá falar com ela!

Senhora Anita se arrasta até o quarto enquanto Jeremias pula para debaixo da cama. Sem estranhar a bagunça, a avó chama novamente por Camila.

- Tá tudo bem vózinha, já to saindo, eu sei que a água não é de graça! – responde a jovem com alguma doçura fingida. Sua vagina parece ainda mais doce. Senhora Anita sai do quarto e Jeremias continua debaixo da cama. A porta do banheiro é aberta para que o vapor não embace o espelho. Camila está nua e seca o cabelo sob o olhar atento do visitante. Ela se aproxima da cama cantando algum lixo popular adolescente e não percebe o som da respiração pesada de Jeremias. Vê a calcinha da avó e sente nojo enquanto o celular toca escondido em algum lugar outra melodia insuportável. Jeremias gosta de Jazz e música clássica. Eu lembro disso e antecipo Moonlight Sonata no iTunes.“I gotta feelin, that tonight´s gonna be a good night”, repete o aparelho celular. Dou risada imaginando o quanto ele pode estar enganado! Camila identifica de onde vem o som e se senta no colchão próxima à cabeceira. Ela inclina levemente o tronco para frente, mas a gravidade pouco pode fazer com aquele belo par de tetas firmes. Com o braço esquerdo alcança o aparelho caído no chão. Jeremias leva um susto, porém se mantém parado. A garota vê quem está ligando e prefere não atender. “I got a feeling..”, insiste o contato. Ela não desliga e a música se repete várias vezes. Talvez essa noite venha mesmo a ser uma boa noite. O tédio me consome e a curiosidade me leva à casa da senhora Anita.

-Boa noite, meu carro estragou e eu dei um azar danado de logo hoje ter esquecido o celular. Eu poderia usar o seu telefone, por favor?

A desculpa era clichê, mas eu uso um belo terno e dirijo um carro do ano. Senhora Anita me deixa entrar. Olho para Bruna deitada no sofá e fico excitado enquanto a velha me fala sobre as ameaças da cidade.

- Realmente é muito perigoso! – concordo com sinceridade.

- Alô, eu gostaria de chamar um guincho, meu carro estragou, mas eu não sei nem exatamente onde eu estou. Um minuto, por favor! - converso com o “tuuuuu” do telefone antes de perguntar à senhora Anita onde nós estamos. Repito as coordenadas. Agradeço com toda a educação ao “tuuuuu” e em seguida à vovózinha. Despeço-me e digo que vou aguardar no carro.

Senhora Anita me convida para uma xícara de café. Talvez ela queira transar e ache que eu seja capaz de fazer isso com ela. Eu aceito e espero por Jeremias.Sento no sofá de dois lugares que faz jogo com o de três onde Bruna está deitada. Desse ângulo desejo ainda mais abrir as suas pernas. Camila se materializa na sala sem que eu perceba a aproximação. Cumprimento-a com um “boa noite” e um sorriso amigável que ela retribui por polidez. Não se interessou por mim, pra ela eu sou um tio velho e feio. Talvez mesmo se soubesse das jóias, roupas e viagens que eu poderia lhe comprar, suas atenções não fossem maiores. Mas eu cansei dessas incertezas ou preliminares. E-bay, telefone e pronta-entrega também já me aborrecem. O que eu faço agora é o que me diverte por mais tempo. Talvez me faça esquecer.

Bruna prefere não sentar ao meu lado e puxa uma cadeira para colocar o sapato. Senhora Anita se aproxima trazendo o cafezinho e as netas dizem que já estão indo embora. Jogo a xícara na parede, saco uma arma e peço por favor que elas não gritem. Elas me obedecem. Jeremias vem correndo até a sala e eu vejo no olhar das mulheres o horror que a situação lhes causa. Senhora Anita recebe um tiro na cabeça assim que abre a boca pra implorar pela vida das netas. Deve pensar que me comove com altruísmo. As gêmeas gritam e é esse o sinal para que outros dois empregados saiam do carro em meu auxílio. Se a senhora Anita não estivesse morta eu lhe diria que seu último desejo foi cumprido e que belas escravas me interessam mais do que cadáveres.

No pen-drive que servia de peso para essa carta vocês podem conferir parte do trabalho de Jeremias. Meu amigo felino passou algumas semanas nessa rua, perambulando pelas sombras com uma microcâmera presa à coleira. Ah, a tecnologia e a ciência! Não esperava que fosse dar tão certo, mas Jeremias levou apenas alguns chutes ao ser descoberto onde não devia. No mais presenciou orgias, fofocas, lindas garotas nuas e muita sordidez. Ainda assim não parece me julgar pelo que viu. Faz ron ron quando eu chego e espera por mais bacon.
Att.
Um grande mentiroso.

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As imagens do pen-drive mostram somente um homem de capuz estuprando as duas gêmeas, amarradas e amordaçadas na cama da senhora Anita. Passados dois anos, ainda não se teve nenhuma notícia sobre o paradeiro das garotas. Quase todas as informações da carta foram confirmadas pela polícia, mas Apolônio nunca foi professor de História. Jeremias ninguém nunca soube se existiu.

quarta-feira, 9 de junho de 2010

(conto) Sexo no supermercado

Ela escolhia as maçãs enquanto eu me apaixonava. Quando levantou os olhos, lá estava eu. Não foi coincidência. Eu ainda olhava para baixo, para algum cesto de algo que eu não compraria, mas fingia me importar. Do outro lado do cesto ela me observava e sorria. Eu sabia disso mesmo sem vê-la, o porquê eu não sei. “Ana!”, gritou uma mulher que passava por nós com o carrinho cheio de compras e assim eu descobri o seu nome.
Passei a fitar diretamente as duas. Ana abraçou a amiga e me pareceu a mais doce das criaturas. Conversaram algumas futilidades que eu não me recordo. Talvez não tenha ouvido, talvez os peitos de Ana tenham me deixado surdo e insensível e agora eu fosse apenas olhos. Olhos que só viam os peitos épicos de Ana.
Ana se despediu da amiga e caminhou em direção ao corredor onde fica a geladeira. Eu fingi vontade de tomar um iogurte. Seus peitos continuavam lindos, mas eu já observava com mais calma todo o resto. Suas coxas também eram grandes e sua bunda magnífica. Ela era maior do que eu, um mulherão mesmo. Vestia uma mini-saia jeans e uma blusa branca decotada. Aproximei-me e falei “com licença”. Ela olhou pra mim, sorriu - exatamente como eu havia imaginado que fosse seu sorriso - e me deixou passar. Agora eu fingia me interessar pelos queijos.
Não tive coragem de puxar assunto. Pensei em perguntar as horas, mas eu usava um relógio grande que ela já podia ter visto. Também achei a pergunta um tanto besta. Precisava dizer algo engraçado, ou então que ela derrubasse a prateleira de presunto para que eu lhe mostrasse o quanto sou solidário. “Ah muito obrigada, você é muito gentil”, ela diria enquanto eu recolho do chão toda a comida. “E você desastrada”. Nós dois daríamos risada. Depois trocaríamos outro olhar e eu seria simpático.
Ana, porém, não derrubou nenhuma prateleira. Quando caminhou para o caixa, eu senti meu coração apertado. Corri atrás dela e gritei o seu nome um tanto mais alto que o necessário para que ela me escutasse. Ana se virou assustada e me viu parado no meio do corredor com um pacote de queijo em uma mão e um guarda-chuva na outra.
- Você esqueceu no corrimão! – disse lhe mostrando o guarda-chuva.
- Ai, eu vivo esquecendo! Mas pera ai, como você sabe o meu nome?
- Ouvi uma amiga sua falando.
-Ah sim! Muito obrigada, você é muito gentil! – foram as suas palavras, que soaram como um deja vu. Ana se aproximou, pegou o guarda-chuva sorrindo, agradeceu mais uma vez e foi embora. Eu ainda fiquei um tempo ali parado, perdido no balançar das coxas que afastavam Ana para sempre de mim. Alheio a todos e ao mundo, refletia em solidão: imaginava Ana nua e nós dois em uma cama grande. Uma história de amor e muito sexo. Foi quando eu ouvi uma voz familiar que bruscamente desapareceu com os meus sonhos.

-Filho duma puta, onde é que tu andava moleque? A mãe tá te procurando há mais de meia hora. Já era pra nós tá no morro! O Nem tá me esperando pra entregar o bagulho. Se ele tiver ralado eu vo vender a porra do teu Play. Pirralho filho duma puta!


Meu irmão puxou o meu braço, arrastando-me até a minha mãe, que me deu algumas palmadas. Por sorte Ana já havia ido embora ou eu morreria de vergonha.